sábado, 18 de maio de 2013



- Não há sossego, doutor.
- Nunca houve?
- Talvez um dia, mas eu estava dopado. Tinha tomado uns comprimidos que vieram em uma caixinha que tinha um detalhe preto. Eu nem me lembro o nome. Mas isso foi há muito tempo. O nome importa?
- Não, não... esta informação já ajuda muito. Diga-me, com sinceridade, esse desassossego tem alguma causa?
- Doutor, ele têm várias causas. Eu poderia até te contar, mas tenho medo.
- Medo? Medo de quê?
- Hummm... Aconteceu há pouco tempo, eu acho.
- Pode falar. Adoro ouvir as histórias dos meus pacientes.
- Eu me lembro que...

...cheguei em casa mais cedo. Estava chovendo. Senti uma aperto intenso no peito e me deitei. Sonhei com um poema do Lorca e acordei assustado. Parecia que tudo em mim não era meu. Senti como se todas as minhas sensações estivessem fazendo uma fogueira dentro de mim. Eu até sentia um cheiro de queimado sair pela minha boca e pelas minhas narinas. Um sentimento de vazio tomou conta de mim. Eu tive vontade de gritar com todas as minhas mágoas e ordenar que fizessem um suicídio coletivo... mas as mágoas são surdas... e adoram gritar. Além do mais, elas nunca andam sozinhas, elas têm a companhia dos medos, que em mim são tão poderosos quanto um gemido que se engole por medo do som sofrido que invade os meus ouvidos. O vazio aumenta. Parece a personificação de um carrasco com capuz que puxa a cordinha da guilhotina. Os medos são fortes em mim. Já tentei afogar todos eles. Já amarrei cordas nos ventiladores de teto, mas não consegui enforcá-los. Descobri que eu sou o medo. E o vazio. A ausência de essência. A anulação de mim mesmo.
O vazio volta a me abraçar. De repente os meus lábios estão colados. Tenho mil apneias acordado. Tremo. Caio no chão e bato com a cabeça. Sangro. Quando rio de mim mesmo os lábios voltam ao normal, mas eu não consigo falar. Olho no espelho e vejo que estou amarelo. Estou tremendo. O meu coração bate forte. Lembro de uma mulher qualquer que fez parte do meu passado. Eu poderia ter dito que a amei desde o primeiro dia. Mentira. Eu não amei nem no primeiro nem no último momento. Mas eu poderia ter dito. Mentir pra ela menos do que eu minto pra mim diariamente.
Eu poderia ter guardado o nome da primeira mulher que eu fiz sexo. Nem sei quem era. Nem sei se isso aconteceu mesmo. Como eu disse, não há sossego. Nem lembranças concretas. Só fragmentos e cheiro de passado. O meu celular toca. Era da operadora de telefonia. A moça tinha uma voz tão linda. Digo que preciso dela e ela diz que a ligação está sendo gravada. Peço a atendente em casamento. Ela desliga o telefone em minha cara e me xinga de um nome feio, mas ela grita esse nome de maneira carinhosa. Eu choro de desespero. Eu nem perguntei o nome dela...
Vou ao banheiro e vomito alguma coisa amarela. Eu sou amarelo. Eu sou o vômito.
Alguém toca a campainha do meu apartamento. Estou pelado. Não tenho como abrir a porta. O som parece rasgar os meus ouvidos. Olho pelo olho mágico e vejo a figura de uma mulher loira, olhos grandes e cílios bonitos. Acho que é a moça da operadora de telefonia celular. Não encontro a chave da porta. Caio no meio da sala e vejo que os meus lábios estão colados novamente. Estou paralisado. A campainha toca insistentemente. Mas algo em mim diz: "se for a mocinha do telefone, ela volta. Ela sabe que você é importante para ela e não vai desistir nunca". Eu rio. Gargalho. Na empolgação dos sorrisos deixo cair um livro do Fernando Pessoa.
Livro do Desassossego... ela vai voltar. Eu sinto isso. Desassossego...
Arrasto-me até a cozinha e vejo que tem uma mulher gorda (nada de eufemismos) vestida de preto na cadeirinha onde eu estava mais cedo. Ele levanta, mexe em seu cabelo e ri de mim. Não era a mocinha da porta, que era a mulher do telefone, que não era a desconhecida que dormi um dia.
A luz se apaga e eu também.

- Depois disso você veio pra cá?
- Bom, eu não sei. Acordei aqui. O que se passou no meio do caminho eu não sei.
- Certo...
- O senhor sabe como vim parar aqui?
- Não. Eu estava nas enfermarias, aí uma enfermeira disse que tínhamos uma emergência.
- Quem te trouxe aqui foi uma mulher loira, de olhos grandes e cílios bonitos. Ela disse que trabalha em uma operadora de telefonia móvel e foi embora.
- (silêncio).


Jackson
Literatura do Desassossego


Nenhum comentário:

Postar um comentário