Encontrei-me neste mundo certo dia, que não sei qual foi, e até ali, desde que
evidentemente nascera, tinha vivido sem sentir. Se perguntei onde estava, todos me enganaram, e todos se contradiziam.
Se pedi que me dissessem o que faria, todos me falaram falso,
e cada um me disse uma coisa sua.
Se, de não saber, parei no caminho, todos pasmaram que eu não seguisse para onde ninguém sabia o que estava, ou não voltasse para trás - eu,
que, desperto na encruzilhada, não sabia de onde viera.
Vi que estava em cena e não sabia o papel que os outros diziam logo,
sem o saberem também. Vi que estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, culpando-me de a não ter.
Vi que tinha nas mãos a mensagem que entregar,
e quando lhes disse que o papel estava branco, riram-se de mim. E ainda não sei se riram porque todos os papéis estão brancos, ou porque todas as mensagens se adivinham.
Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como à lareira que me faltou.
E comecei, a sós comigo, a fazer barcos de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguém me quis acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago com que provasse a minha verdade.
Palavras ociosas, perdidas, metáforas soltas,
que uma vaga angústia encadeia a sombras...
Vestígios de melhores horas, vividas não sei onde em áleas...
Lâmpada apagada cujo ouro brilha no escuro pela memória da extinta luz... Palavras dadas, não ao vento, mas ao chão, deixadas ir dos dedos sem aperto, como folhas secas que neles houvessem
caído de uma árvore invisivelmente infinita...
Saudade dos tanques das quintas alheias...
Ternura do nunca sucedido...
Viver! Viver! E a suspeita ao menos, se acaso no leito de Proserpina haveria bem de me dormir.
Fernando Pessoa
In:
Livro do Desassossego