terça-feira, 8 de maio de 2012

TREM DA ILUSÃO - Arnoldo Pimentel


Hoje é só um dia que o trem não irá enfeitar sua vida. O dia amanheceu sem alegria, a chuva embaça a janela por onde seus olhos procuram o céu para saber se está claro para poder sonhar com seu trem no quintal. Hoje a chuva embaça seus sonhos de liberdade no apito que invade o espaço cortando o ar com a delicadeza de sua voz. Seus olhos já estão embaçados como a janela pelas lágrimas que escorrem pelo rosto, pelo desgosto.
Nesses dias de chuva o pequeno quintal de sua casa passa ser como um horizonte longe demais, então sua sala seria o lugar para seu trem. Se tivesse um trem de brinquedo, pegaria a máquina e tiraria a poeira com um pequenino espanador, pegaria uma flanela e daria um brilho para ficar bonita como uma princesa de aço, limparia o vagão de lenha e depois os vagões de carga, que seriam dois e por fim os três de passageiros, sim, seria um trem grande, bonito, vistoso. Armaria a estrada de ferro pela sala, emendando pedaço com pedaço, sem pressa, passando a estrada por trás da estante, do sofá, das poltronas e pelo meio da sala, ali seria como o deserto, uma pradaria sem fim, cercada de nada por todos os lados, pelos fantasmas da sede e da solidão, pela noite fria e pelo dia escaldante, com o sol brilhando com toda sua beleza e sua força, assim os passageiros iriam sentir toda a solidão que existe no deserto, no deserto dos lobos, das pessoas, dos poetas, até a caixa d’água, sim, ele não esqueceria a caixa d’água no meio do deserto, ela iria matar a sede do trem e das pessoas, sua sede de brincar, sua sede de amar cada pedaço do trem, sua sede de viver cada minuto da sua infância, depois de matar a sede todos iriam seguir viagem pelo meio da sala, meio do nada, do quadro pintado ao seu redor, medo de ficar só.Depois de algum tempo de viagem, iriam avistar o povoado, o trem apitando, as pessoas se aglomerando na estação, estação onde chegavam sonhos, de onde partiam sonhos, estação de todos, estação de ninguém, estação de trem, mas não havia trem, apenas uma sala vazia, vazia como sua infância, por onde perambula, por onde só pode ficar com seus pensamentos de um dia ir adiante. Seu olhar só quer fitar os pingos da chuva, tentar enxergar quando passar, para saber se ainda poderá viver, poderá brincar, brincar com seu trem feito de madeira, pedaços de madeira, feito de imaginação, feito de coração, então quando a chuva passar, correrá para o quintal, nem mesmo esperará a terra secar, e montará seu trem com os pedaços de madeira, com os pedaços de sua história, que um dia há de se montar e se mostrar.
O menino ficou ali observando a chuva pela janela embaçada, as nuvens negras que escondiam o sol, que cobriam o céu, os raios que cortavam sua esperança, como a realidade adulta corta os sonhos de criança. A noite caiu, não tinham estrelas, olhou mais uma vez pela janela, sentiu o frio do desencanto e resolveu entregar-se ao sono, deitou-se desejando sonhar com um dia de sol, que enfeitaria seu quintal para poder sentir alegria no seu coração e montar seu trem de madeira, seu trem feito de ilusão.


Arnoldo Pimentel




Esse conto faz parte da Trilogia dos Meninos
Leia os outros dois nos links abaixo




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