Eu acordo no meio da noite. Ouço o silêncio insuportável da madrugada e passo longos minutos olhando para o telhado, contando manchas e detalhes que sempre passaram despercebidos. Um vento frio invade o quarto. A chuva cai... a chuva chove. Ouço gemidos escandalosos que vêm do apartamento vizinho. Acendo a luz, procuro um livro. Todos os Fernandos estão ao alcance de minhas mãos, menos o Pessoa.
Levanto mais morto do que vivo. Procuro o meu remédio. A caixa está vazia. Eu também. Todas as minhas articulações doem. Parecem vidros espatifados de uma lâmpada queimada. A geladeira guarda doces... odeio doces. Mas como assim mesmo. Nem sempre se come aquilo que se gosta. O que importa mesmo é a satisfação do corpo e o tesão da alma. E pelos gritos que rasgam o silêncio fúnebre da madrugada, os meus vizinhos parecem mesmo entender tudo sobre satisfação... Ligo a televisão e vou assistir aos programas religiosos. Deve ter um exorcismo bom passando. Adoro exorcismos. Tenho inveja das pessoas que têm os seus demônios arrancados de si. Não porque tenho esses bichos, mas é que existe um romantismo tântrico no ato da expulsão do danado. Bom mesmo é deixar os bichinhos dentro do corpo. Tirar pra quê? Aquilo que não me mata faz parte
daquilo que me transforma, já dizia o sábio Coringa.
Deito no sofá e deixo a televisão ligada em um canal qualquer. A emissora faz o meu aparelho cuspir mais estática do que imagens e eu rio de mim mesmo.
Fecho os meus olhos, sinto mãos suaves acariciando os meus cabelos. Eu nem abro os meus olhos. Seja quem for, que continue. É bom... é gostoso. GOSTOSO, grita a mulher no apartamento ao lado. Os carinhos continuam em minha cabeça, invadem o meu pescoço. Eu suspiro... sinto um cheiro doce no ar. Enquanto respiro o oxigênio açucarado, me vejo andando de mãos dadas com um fantasma do passado vestido de preto e com as unhas vermelhas dizendo que quer me levar para um lugar onde tem uma cama redonda. Uma trovoada vem lá de fora e mil acontecem dentro de mim.
De olhos fechados eu me vejo arrancando as roupas pretas da mulher que usa um perfume doce. Suas unhas estão cravadas em meu pescoço e áspera é a sua língua dentro da minha boca. Todo o meu corpo é arrepios. A minha alma é alguma coisa que ainda sente os efeitos de uma anestesia geral. Sinto o toque daquela boca em cada milímetro cúbico do meu corpo. A cama é redonda, mas a forma pouco importa. A chuva cai... a chuva chove. O casal continua gritando. O meu silêncio é o meu gemido. A minha expressão facial é o retrato 3X4 da explosão cósmica de sentir a temperatura vulcânica do interior daquele corpo que eu sei que tem um nome e que possui uma história e que em algum momento da vida, sua história alegre esbarrou na tristeza da minha. Seus seios são doces para os meus dentes e o meu peito carrega cada exemplar de seus dentes, sempre tão belos que fariam a Berenice, de Poe, cortar os pulsos com gilete devido à inveja.
Em seus braços eu vou... Em seu corpo eu volto.
Sobre ela eu mergulho no abismo espectral da noite... sob ela eu assisto à explosão do sol, em minha frente... Enquanto o sol explode em bilhares de esferas coloridas, sinto uma energia que vem lá dos pés, atravessa todo o meu corpo e quebra a parede de vidro dos meus sentidos e me faz dizer palavras sem nexo. Os meus ouvidos estão tampados e as minhas pernas tremem. O cheiro que está no ar é uma mistura de loucura
entrelaçada com pedaços grandes de absurdos.
Deito ao seu lado e ensaio uma apresentação de silêncios... um monólogo de pensamentos amordaçados... ela finge que está dormindo. Não diz nada. Seus olhos são grandes e marrons. Fechados, eles parecem uma mão invisível que me promete mil asfixias com um travesseiro metafórico dos meus histerismos. Sua boca esboça um sorrisinho melancólico.
Existe um ar de abuso em seu semblante...
Preciso do meu remédio. Sem dizer uma palavra, ela se levanta. Eu apenas observo. Ela abre a sua bolsa preta e joga uma caixinha branca com um detalhe negro que envolve toda a embalagem. Eu arrebento a caixa com os dentes e tomo dois comprimidos. Deito ao seu lado,
sempre no mais dantesco silêncio. Durmo.
Se o casal vizinho continuou a sua festa eu não sei. Também não vi quando a chuva passou. Na cama, eu senti uma dor no peito. Foi onde a mulher de preto me mordeu. Tem uma mulher em minha casa!!! Gritei dentro de mim. Acordei desesperado e não vi ninguém em meu lar.
O banheiro estava molhado e tinha um cheiro de mulher dentro dele.
Volto para a sala.
Eu que não fumo, acendi um cigarro. Observo o sofá. Ainda tem o cheiro dela, doce como só ela sabe ser.
Descobri o sentido de uma música da Madonna, chamada I'LL REMEMBER...
- And i'll remember
The love that you gave me
Now that i'm standing on my own
I'll remember
The way that you changed me
I'll remember
Now i'll never be afraid to cry
Now i finally have the reason why
I'll remember
Sim, eu lembrarei...
A solidão e suas várias faces.
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