
A morte é isso: o dano irreparável. La commedia è finita.
Não vi meu pai nos seus últimos meses de vida. Internado em um hospital, o corpo sendo destruído lentamente por um câncer horroroso, deixei que sofresse sozinho. Provavelmente, foi o ato mais cruel que pratiquei em toda a minha vida, conseqüência do prazer perverso que era imaginar que ele estava morto há muitos anos. Mesmo quando ele estava vivo, éramos estranhos. O pouco que tínhamos em comum eu não queria lembrar. Quando, na manhã de 10 de dezembro de 1989, fui comunicado de que a vida dele havia terminado, reuni todas as forças possíveis e decidi seguir em frente, sem choro, sem lamúrias. Não fui muito longe. Alguns meses depois, ao perceber que a historia que une a nossa família foi construída por desencontro, ressentimento e mágoa, tive uma crise emocional. Comprovando a incapacidade de resolver sozinho, e de forma adequada, os sentimentos represados, durante horas mergulhei em uma espécie de exercício de contrição tardio, a percepção de que nunca mais seria possível reatar os laços de sangue. Todo esse drama não melhorou minha vida, mas me fez ver algumas nuances que, por diversos motivos, sempre tentei ignorar.
Esses sentimentos cuidadosamente escondidos na mais escura das gavetas da memória voltaram à tona com a leitura de um texto autobiográfico de Philip Roth, Patrimônio.

Infelizmente, com frases curtas e palavras longas não é possível descrever as idiossincrasias de um homem lúcido e teimoso. Como se dizia em outros tempos, Herman foi uma figurinha carimbada. Entre dezenas de cenas divertidas, Philip conta que o seu pai, depois da morte da esposa, mudou−se para um conjunto residencial para idosos e não encontrara dificuldades em convencer as viúvas ricas do prédio (...) que acabara de fazer setenta anos, embora toda a família houvesse se reunido no verão anterior em minha casa de Connecticut para comemorar seus oitenta anos.
Aos 86 anos de idade, cheio de forças para continuar a diversão, Herman descobre que tem um tumor cerebral – que não tarda a se manifestar fisicamente. Em nenhum momento o doente se deixa abater, embora esteja ciente de que não conseguirá escapar do abatedouro. O que pede é mais algum tempo de vida. Para poder usufruir dessa migalha, aceita o martírio que se estende por salas de espera de consultórios médicos, exames dolorosos e diagnósticos contraditórios. Philip o acompanha em quase tudo. E sofre junto. A morte do pai é, guardada as devidas proporções, a comprovação de que ninguém está preparado para a perda. Seguindo uma tradição familiar, assim como Herman fez com seu pai (Sender), Philip fez com Herman: acompanha a chegada da morte. Sentado ao lado da cama de hospital, aguarda o desfecho inevitável.

Herman fica no quarto, vestido com roupas limpas e em estado de vergonha infinita. Philip volta ao banheiro e termina a faxina. Nesse momento, descobre a chave para o entendimento:

Ali estava o meu patrimônio: não era o dinheiro, não os tefilins, não a tigela de barbear, mas a merda.
P.S.: Para que tem interesse em narrativas relacionadas com a decadência física dos pais, narradas pelos olhos dos filhos, imperdível é O Lugar Escuro, de Heloisa Seixas, que narra a história de sua mãe, vítima do mal de Alzheimer.
Pedi ao médico que me deixasse a sós com meu pai, ou tão a sós quanto era possível em meio à azáfama da sala de emergência. Sentado ali e observando o seu combate para continuar a viver, tentei me concentrar no que seu tumor já lhe causara. Isso não era difícil, porque naquela maca ele parecia ter lutado cem assaltos com Joe Louis. Pensei nos horrores que inevitavelmente viriam pela frente, mesmo supondo que ele pudesse ser mantido vivo num pulmão de aço. Vi tudo, tudo, e mesmo assim tive de continuar sentado lá por um longo tempo antes de chegar o mais perto dele que pude e, com os lábios quase tocando o seu rosto encovado e arruinado, finalmente encontrar forças para sussurrar: Papai, vou ter que deixar você ir embora. Ele já estava inconsciente havia horas e era incapaz de me ouvir, mas, em choque, aturdido, chorando, repeti aquilo muitas e muitas vezes até eu mesmo acreditar no que dizia.
Depois disso, só me restou seguir sua maca até o quarto onde o puseram e me sentar ao lado da cama. Morrer dá trabalho, e ele era um trabalhador. Morrer é pavoroso, e papai estava morrendo. Peguei sua mão, que ao menos eu ainda sentia como sendo sua mão, afaguei sua testa, que ao menos ainda parecia ser sua testa, e lhe disse todo o tipo de coisas que ele não podia mais registrar. Por sorte, de tudo que eu lhe disse nessa manhã, nada havia que ele já não soubesse.
Por ordem cronológica, os três homens da casa: Herman, Sandy e Philip Roth
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