sábado, 29 de junho de 2013

Caixinha de Pandora: Rostos e portas


Arte: Confidências


Dramas humanos acontecem todos os dias e atingem pessoas que desconhecemos. Porém, quando eles vêm bater-nos à porta porque tocam alguém que nos é caro ou a nós próprios, tomamos consciência da sua existência.

Todos reagimos de forma diferente e pessoal. Há os que se escondem e vivem as suas mágoas em silêncio. Há os que gritam as suas dores ao mundo inteiro. Há os que tentam a todo o custo continuar a avançar, conscientes que todos os observam para saber como vão encarar a situação.

Quando conhecemos alguém que sofre na consequência de uma das inúmeras e naturais dificuldades da vida, também reagimos de forma diversa. Há os que manifestam imediatamente a sua vontade de auxiliar, mesmo contra a vontade do objecto do auxílio. Há os que oferecem discretamente uma mão estendida e aguardam que ela seja aceite. Há os que guardam o silêncio por não saber o que fazer ou dizer. Há ainda - e são por vezes os mais frequentes - os que, sob o pretexto de oferecer auxílio, aproveitam para fazer todo o tipo de perguntas indiscretas e desnecessárias, com o único objectivo de serem os únicos a deter a informação completa sobre a origem, a causa, os elementos e todas as consequências do drama que bateu à porta do outro. São estes últimos, que vamos chamar "ajudadores condicionais", que são interessantes a observar.

São pessoas como todas as outras. Aparentam o rosto da bondade, oferecem ajuda, disponibilizam-se para auxiliar qualquer um! Mas, quando olhamos de mais perto, é fácil aperceber-nos que só oferecem auxílio quando isso lhes pode trazer algo. Por vezes, é o reconhecimento das suas bondades, pois é sempre publicamente que os gestos de apoio são manifestados. Outras, é o facto de ser o centro de atenção de todos os espectadores do drama que, não estando directamente envolvidos, não podem satisfazer a curiosidade de informação ou - deveríamos dizer - de boatos. Outras ainda, é a satisfação de ter sido o depositário da confiança do martírio que, desesperado por não encontrar ninguém a quem confiar as suas infelicidades, acaba por desabafar com a primeira pessoa que se encontra disponível.

No entanto, esses "ajudadores condicionais" nunca se manifestam quando o preço a pagar seria um verdadeiro investimento desinteressado. Todos nós os conhecemos: são aqueles que têm sempre uma desculpa para desaparecer quando seria necessário ouvir sem interromper, escapar quando seria indispensável dar a mão sem nada pedir, e fugir quando deveriam oferecer sem nada esperar receber.

É nesses momentos que revelam o seu verdadeiro rosto. Não podendo mais ser o centro de atenção dos espectadores passivos em razão da sua bondade, tornam-se então o centro de atenção em razão das suas opiniões, baseadas - aos olhos de quem os escuta - no conhecimento perfeito da situação que descrevem! O auxiliado, outrora objecto de compaixão, torna-se então - no discurso do "ajudador condicional frustrado" - responsável da sua miserável situação, incapaz de enfrentar devidamente os eventos e surdo a qualquer conselho.

É curioso como a multidão se cansa rapidamente do sofrimento alheio para preferir-lhe detalhes sórdidos que poderão dar origem a mil conversas maldizentes. É muito mais fácil passar a esponja de insensibilidade sob desastres e dramas, que de os encarar com sinceridade. Afinal, encarar a situação, significaria reconhecer que, noutras circunstâncias, a espada poderia ter caído sobre nós e não sobre os outros. É preciso coragem para ultrapassar certas mágoas na vida. Talvez essa atitude falsamente condescendente seja a manifestação do alívio de saber que o evento infeliz bateu á porta do vizinho e ficou, por enquanto, cego à entrada da nossa casa.


Dulce Mor@is


"Ninguém pode, por muito tempo, ter um rosto para si mesmo e outro 
para a multidão sem no final confundir qual deles é o verdadeiro."
Nathaniel Hawthorne
in "A Letra Escarlate"



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