Acordo cheio de ideias.
Elas estão saltitando na panela da criatividade.
Situações reais dando os braços às minhas idealizações mais surreais. Deitado na cama, contemplando as águas da preguiça, vou experimentando sensações e esculpindo desejos na pedra branca dos meus impossíveis. Misturando cores nas telas dos absurdos que andam comigo...
Criando novas ordens para as notinhas musicais que não passam do lendário e extraordinário "dó, ré, mi, fá, fá, fá/ dó, ré, do, ré, ré, ré/ dó, sol, fá, mi, mi, mi/ Do, ré, mi, fá, fá, fá".
Salto da cama com a companhia fiel dos meus desesperos.
Eles me puxam com violência e gargalham
quando reclamo que machucaram o meu braço.
Vou ao banheiro e realizo o básico de uma higiene apressada e satisfaço desejos urgentes do corpo.
Sem roupa... Não faz mal.
Preciso apenas dos meus óculos. Pronto.
Enquanto o computador carrega o sistema, sinto um frio maldito que vem de uma janela fechada.
Ansiedade.
O coração bate muito forte.
Deve ser esse o prólogo de um ataque cardíaco.
Não sei.
Suor... tremuras...
Uma espécie de tesão metafísico toma conta de mim.
"Vamos escrever", diz uma parte de mim que era muda.
Olho para a tela do notebook e vejo que estou travado.
Não consigo encontrar as palavras para começar a transformar em palavras as ideias que estavam saltitando na panela de uma
criatividade que eu nem sei se merece esse nome.
Tento, pelejo, luto e desdobro as significações de todos os meus esforços que nem são tão esforçados assim, mas não consigo.
Gosto quando eu acerto de primeira.
O prazer é maior e sufoca as máximas encorajadoras
que em mim não funcionam bem.
Ao meu lado, uma mulher branca, loira e com uma pinta próxima canto ao lábio superior sorri baixinho.
Suas unhas são vermelhas, seus olhos claros
e há um cheiro de rosas exalando dela.
O seu cabelo está amarrado no estilo rabo de cavalo.
Acho lindo.
- Quem é você?
- Eu sou a personificação de sua escrita.
Letrinhas transformadas em carne; a metamorfose dos símbolos gráficos em sangue quente e uma explosão de ideias é o que dá vida a mim.
Sou o choque entre o ler e o escrever; entre o foda-se e o abraça-me.
Eu sou. Simplesmente.
- A minha escrita?
Você deve estar brincando.
A porta está trancada.
Não tem como alguém entrar aqui...
- Querido, jogue essa idiotice fora.
Ela convence as demais mulheres.
Eu sou imune ao que vem de você.
Sou um pedaço seu.
Sou eu a responsável pela transformação de suas ideias em palavras.
Tudo o que você escreve, mesmo quando escreve no quadro, para seus alunos ou quando redige uma lista de compras, lá eu estou.
Serpenteando a sua mão.
Dando formas aos teus rabiscos.
Faça um teste.
Escreva com os olhos fechados.
Tá vendo?
Eu guio a sua mão.
- Puta que pariu mil vezes...
Entendo.
Eu acordei cheio de ideias.
Queria muito transformar isso em palavras.
Por favor, me ajude.
Silenciosamente, ela se pôs de pé.
Uma espécie de névoa amarela tomou conta da sala escura.
O ser que se denominava a minha escrita usava um vestido longo, branco.
Ela dançava, levantava uma das pernas e imitava
os movimentos de uma espanhola.
Seu sorriso era sensual e o seu olhar parecia uma mistura entre um orgasmo real e o fingimento de um prazer qualquer.
Formava uma bela dupla com a marquinha próxima à boca.
Confesso que algo em mim desejou loucamente algo nela.
O salto fazia barulho e eu, em paralisia, assistia a tudo com
aboca aberta e assustado.
Sem ação.
Ela pegava as minhas mãos, fazia com que eu tocasse os seus seios e segurasse em sua cintura fina enquanto ela fazia movimentos que poderia congelar o sangue de qualquer um.
Tive as pontas dos meus dez dedos dentro de sua boca e em seguida ouvi a sinfonia das vogais dentro de minha cabeça.
Dancei com ela a valsa das consoantes, o minueto da sintaxe e a serenata das acentuações... graves, agudas, circunflexas. Todas.
Durmo em seguida.
Sonho com a sagração da minha idiotice.
Levanto do sofá e vejo que o computador está ligado.
O teclado tem cheio de jardim.
As letrinhas estão sorrindo para mim.
Todas.
Começo a escrever e enquanto digito me vem à mente a lembrança daquela mulher loira, alta, cantarolando em meus ouvidos uma cantiga sem letra, sem ritmo, apenas um "hummm... hummm...hummm..."
E assim, o que outrora estava travada, simplesmente se destrava...
Jackson - Literatura do Desassossego
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