Independente dos irresponsáveis por essa espetacular mentira, também chamada nas mesas de bares, restaurantes e similares de “a” verdade, a tragédia anunciada se cumpriu, basta abrir os olhos e ver: a poesia foi comer capim pela raiz. Artigos em jornais e revistas jamais alterarão a triste realidade – também não impedirão oportunistas de decretar luto oficial por três dias ou um minuto de silêncio antes do início de jogos de futebol. Órfãos e carpideiras, munidos de coragem, poemas e solidariedade, pronunciarão épicos discursos em saraus emotivos, sabedores de que a poesia cumpriu com a sua missão na Terra – não adianta choro nem vela, a poesia bateu com as botas.
Não é brincadeira: a poesia está versejando em outras paragens, em outras pastagens. Com o rosto oscilando entre a sisudez e a gargalhada, em razão do mundo litero-alcoólico em que habitamos estar repleto de burros e capim, não é possível deixar de constata o óbvio, o inequívoco, o reles e o comum: a poesia se transformou em banquete dos vermes.
Inutensílios a ocupar o espaço do home teather, todos os livros de poesia estão sendo despejados das estantes e, hoje ou amanhã, compartilharão a vala comum com as novas bugigangas tecnológicas (e-book, Kindle, Sony Reader – além de milhares de gadget similares, destinadas a distraírem as “crianças”).
Vendidos como papel para reciclagem, Estrela da vida inteira e Claro enigma terão o mesmo destino dos escritos de João Cabral de Melo Neto, Francisco Alvim e Gonçalves Dias. Quase nos fundos da sala, abandonado sobre uma mesa, um exemplar de Poesia Reunida, de Orides Fontela, aguarda que o destino se cumpra.
2. Nessa área pastosa que os teóricos chamam de a-pós-o-moderno, quem é o leitor de poesia? Eu não sou! Faz séculos que não compro poesia. De vez em quando me pego folheando velhas antologias, livros maltratados pelo tempo e pelas minhas mãos. No embalo lírico, vou lembrando oportunidades tolas em que tentei dentro da tua orelha fria / dizer segredos / de liqüidificador, Vinícius de Moraes era tiro-e-queda quando se estava de olho em alguma namorada em potencial. Mais tarde, com as mesmas más intenções, o caminho das pedras era decorar Adélia Prado e, entre um gole de vinho (sim, o padrão das alucinações também tinha melhorado) e o declamar de verso “na medida”, o mundo parecia ser um imenso parque de diversões. Hoje, salvo as raras exceções que confirmam a regra, não compro nem mesmo aqueles livros artesanais, sínteses do encontro da necessidade com a beleza, vendidos de mão em mão, em mesas de botecos, no meio das ruas, o autor, travestido em cidadão de segunda (ou terceira) classe que não se alimenta a uma semana, e, sem jeito, implora por ajuda ou por prato de comida.
O olhar passeando pela estante, descobrindo a distância intelectual entre o conhecimento e os livros que não estão lá, recupera a frase-desculpa das livrarias: “não vende”, diz o funcionário. No trânsito, ninguém se importa em atropelar versos de pé quebrado. Nos corredores dos shoppings centers nunca encontrei um pentâmetro elegíaco. Na manicura, longas conversas sobre o último capitulo da novela e nenhuma epicédio. Será que, em nova imagem do corpo em decomposição, a poesia se opõe ao “mercado”?
Se não for muito complicado, gostaria de saber quem está consumindo (a, com a) poesia? Para quem escrevem os poetas?
3. Não importa a opinião dos politicamente corretos (que, na falta de uma ação mais efetiva, tentam colocar culpa nos amantes dos livros de papel, enquanto fazendeiros, garimpeiros e especuladores derrubam e queimam milhares de hectares de florestas), a poesia perde parte da graça na tela do computador. Falta a possibilidade do contato táctil, olfativo e visual: abismos que abrigam a morte do pensamento, transformando a emoção em letras fosforescentes e mortas.
Outro dia, recebi mensagem eletrônica com parte dos versos praticados pelo Fabrício Carpinejar. Não me empolguei, me pareceu coisa de quem (naquela hora neutra da madrugada em que todos os segredos são revelados) gostaria de ficar rico escrevendo livros de auto-ajuda. Gosto do Antonio Cícero e do Fabrício Corsaletti – apesar de acreditar que ele escreve prosa melhor do que poesia (recomendo Golpe de ar). Gosto de um ou outro contemporâneo, mas tenho vontade de rasgar (ou, em bom português, deletar) todos aquelas bobagens sentimentais ou herméticas que os sem imaginação costumam chamar de poesia.
Cheio de nostalgia, lembro de outros tempos, a poesia não era preservada de participar da vida cotidiana, do meu, do teu, do nosso mal-estar/bem-estar. Era um altar onde todos se ajoelhavam e rezavam, os mistérios mais gozozos eram cultivados no jardim das delícias, frutos e frutas sumarentos, água na boca, o pecado ao alcance de um verso, sempre é mais gostoso quando desafiamos deus ou o perigo.
Postado por Raul Arruda Filho - http://raulealiteratura.blogspot.com/
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