A vida amorosa está intimamente ligada com a geografia do desejo. Com o auxilio das mãos e da boca, os amantes vão descobrindo sutilezas um no corpo do outro. Confundindo apetites, tentações e vontades, língua e dentes viajam pela pele. Nada é indecente − melhor se for freqüente.
Enquanto os dedos percorrem a circunscrição do território sagrado, fornecendo forma ao impossível, aquele que está apaixonado jamais pode alegar inocência. Pequenas mordidas introduzem o revolucionário desassossego. O excesso vigora. Ninguém quer controlar o incêndio, a excitação desliza pelo corpo, como se fosse fogo líquido − estimulo constantemente renovado para que as áreas úmidas se multipliquem. Ninguém almeja se afastar do desfalecimento da razão.
Beijos e arrepios afastam a sensatez. O amor recusa se ocupar com o mundo que o cerca, as zonas de alarme não assustam. Como se estivessem de posse do mapa do tesouro, sem pudor ou medo, ele vasculha saberes e sabores, frutas e frutos, canais e rumos. O enlevo e a ternura estão associados com formas e relevos.
A alquimia da cobiça logra proezas: os amavios, misturando saliva, naufrágio e delícia, ajudam a soletrar o eu−te−a−mo em todas as conjugações. Uma contradição: a felicidade e o imobilismo fazem par.
O corpo próximo de outro corpo recusa o deslocamento − quer ficar ali o quanto lhe for possível, se movendo ao compasso dessa (an)dança. O que não quer é encerrar (prender, terminar) a vertigem. O que não quer é fatiar o desejo, perder a vontade, interditar o prazer. Devagar, o enamorado sonha com o enlouquecer − na companhia de quem está disposto a acompanhá−lo nesse delírio. Lentamente, vai induzindo fluxo ao júbilo, sem querer entender se essa substância é sólida, líquida ou gasosa. Depois de tudo, com a proximidade do enlanguescer, até a poesia se transforma em prosa. Ou goza.
As imagens deslizam pelos sentimentos. Como prova de amor, as palavras surgem na ponta da língua:
Se a tua língua
linda de longa
lábia se aninha
em cada lábio
lábil da minha
trompa de Eustáquio
e langue−lenga,
a minha língua
logo se vinga,
lambe o batom
sabor de ópio
das tuas trom
pas de Falópio
e nelas míngua.
Dar voz ao desejo e ao desejante estabelece espaços de conflagração − batalha para que não haja vencedor, combate para saciar todas as ânsias, luta sem fim.
Houve dentro das trompas (Eustáquio, Falópio) o inaudível, cerimônia íntima cheia de pompas, tesa seta a perverter o alvo, nada está a salvo quando a excitação dá as ordens, estabelece relações, transborda segredos na orelha:
Meu lugar preferido
é perto do ouvido
nas dobras da sua orelha
onde minha língua passeia
sem sair do lugar
é lá que enfio bem fundo
o verbo mais imundo
que consigo encontrar.
Entre a língua e a orelha, o discurso amoroso não comporta bom comportamento, abertas as comportas para que a fala subverta a linguagem, o pensamento, os sentidos, impondo sentido ao aparente não ter sentido. A fala enuncia o que ao falo momentaneamente é vedado, a fala substitui a fruição, migrando para o imaginário o que está interdito.
Obsceno teatro, a cena principal não acena ao superficial: tudo é real. O que repercute não ilude. A poesia é encanto, é flertar com o abismo. Um sismo.
P.S: O texto acima ambiciona dialogar com dois poemas. O primeiro foi escrito por Nelson Ascher e está incluído no livro O Sonho da Razão (São Paulo: Editora 34, 1993). O segundo é de autoria de Paula Taitelbaum e pode ser encontrado no livro Porno pop pocket (Porto Alegre: L&PM, 2004).
Postado por Raul Arruda Filho
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