...E assim ela me encontrou no auge dos meus trinta e um anos. Eu estava literalmente despedaçado, humilhado e carregando nas coisas um saco cheio de vergonhas agonizantes, daquelas que são levadas à força como crianças que vão à salinha de injeção, em um hospital qualquer, guiadas pelas mentiras de seus pais que dizem que não vai doer nada.
Ela me pegou, com paciência e delicadeza, juntou os meus pedacinhos, saciou a minha fome, me protegeu contra o frio e com uma técnica desconhecida e misteriosa, arrancou de minha boca um sorriso ainda mutilado,
mas era um sorriso.
Com o passar do tempo os meus pedaços já estavam fixados ao corpo novamente. Nem doía mais. Só quando fazia frio. Mas aqui no DF a temperatura é sempre alta e a umidade é baixíssima, então eu nem era incomodado pelas dores. Quase nunca...
O tempo foi passando lentamente. Um dia ela me convenceu a pegar aquele saco cheio de vergonhas que eu ainda insistia em guardar. Disse que era inútil guardar essas coisas que fazem doer.
Eu juro que não gostei. Se lá dentro tinham coisas ruins ou boas, eram minhas coisas. Então com o peito explodindo de gratidão e uma empolgação sem explicações racionais, eu fui até a sua cama e disse que iria me desfazer das tais vergonhas. Ela me levou até à ponte J.K e disse:
-Você sabe o que precisa fazer, né?
-Sei. Mas confesso que é estranho.
-Por que estranho?
-Por aqui tem coisas boas também.
-Mas é preciso desfazer de tudo.
-Para nascermos em outra vida, é preciso morrer na anterior.
-Hummmm... Tem razão.
De repente eu me senti um protagonista de um filme à Steven Spielberg. Senti o cenário em comunhão comigo, em minha mente havia até trilha sonora. A água refletia o céu vermelho de fim de tarde que só o Distrito Federal é capaz de oferecer. Então, com uma mão eu ergui o saco surreal e metafórico de vergonhas e o atirei ao lago Paranoá.
-Sente-se melhor?
-Sim.
-De verdade?
-Leveza. Apenas leveza.
Voltamos para a vida real. Andamos muito. Conversamos mais ainda. A noite era um espetáculo único. Eu ria por fora. Chorava por dentro. A gratidão, com o tempo, tornou-se uma vergonha e foi a primeira que eu coloquei em um saco novo. Desta vez limpo e sem remendos.
Essa mulher que outrora montou os meus pedacinhos não suportava a ideia de eu carregar comigo um fardo passado. E, com o passar dos dias, ela mesma foi enchendo um novo, desta vez mais pesado e só dela. Muito mais pesado!! Quando ele estava cheio. Ela também se encheu. De mim.
Ela se foi. Eu fiquei com um peso maior do que aquele, do início desta história. Carrego o danadinho por aí. Com o corpo encurvado, barbudo, cansado e sem esperanças futuras...
Às vezes eu sento sob uma árvore, abro só um pouquinho e fecho bem depressa. Quando tenho sorte algo que sai de lá me faz rir.
Mas ainda assim, machuca.
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