
Morreu a porta−estandarte. A avenida colorida, o volume alto da música, os foliões dançando. A notícia se espalhou como rastilho de pólvora. Morte de manchete de jornal ou de conto antigo, época em que o amor complementava a vida e diminuía o medo da morte.
O samba anestesiando as prestações atrasadas da geladeira. Alguns minutos antes, a mulata estava acompanhada por algumas flâmulas, panos coloridos carregados pelo vento e pela alegria. Dezenove anos. A ginga, os seios de bom tamanho, a bunda empinada, o corpo ebúrneo. Olhares e pensamentos indecentes. Convites ao pecado, às ilusões de carnaval.
Deveria ter proibido que ela saísse de casa. A diversão era sua. Ela nua. Ele e ela. Ninguém mais. A multidão embaralha a felicidade. Homens mascarados, mascando a impaciência do macho à procura de fêmea. Há sempre uma possibilidade de desgraça escondida em cada esquina, em cada porta de botequim, em cada vitrine de loja.
Vozes maternas apavoradas. Sem entender nada, sem saber o que aconteceu. Onde está minha filha? Corre−corre angustiado. Empurrões. Blocos de sujos sendo desfeitos. Olhares de indignação. Em seguida, o alívio: foi a filha de outra.

O corpo da cabrocha estendido na avenida. Parece dormir. A faca esculpiu uma rosa de sangue no seio esquerdo. Ao lado, o dublê de amante e assassino − sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. Os olhares dos passageiros dos bondes se perdem na distância, deixando para trás os paralelepípedos sujos com o horror.
Na quarta-feira de cinzas, a vida recomeça.
Raul Arruda Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário