Aos leitores e cinéfilos de plantão.....
A difícil arte de contar histórias (a faculdade de intercambiar experiências, como dizia Walter Benjamin) encontra algumas dificuldades nestes tempos a−pós−o−moderno. A fluidez e o descartável (em conjunto com as más−intenções do capitalismo tardio e predatório que devasta a racionalidade iluminista) fizeram um estrago que vai demorar séculos para ser corrigido. Ou esquecido. No entanto, quando alguém anuncia que vai escrever uma narrativa em sete volumes, cada um deles com cerca de 700 páginas, é preciso, no mínimo, prestar atenção. O que será que ele "viu", que outros escritores não viram?
As Crônicas de Gelo e Fogo é uma espécie de contos de fadas para adultos. Ou, para ser mais exato, uma fantasia para pós−adolescentes (principalmente aqueles que gostam de jogos comoMagic ou Dungeons and Dragons). Ambientada em uma espécie de Idade Média ad hoc, onde o Estado e a ambição dos indivíduos brigam a cada segundo por uma fatia de poder, a narrativa não esconde que todos (autor, narrador, personagens) estão com fome. Seja por comida, seja por algum tipo de influência no ordenamento social. Pouco importa qual é o combustível. Saciar essa necessidade é tarefa de difícil execução.
Guardadas as devidas proporções − e descontando certos exageros − As Crônicas de Gelo e Fogo é um imenso painel da condição humana. Por isso mesmo é que não é uma narrativa para ser lida em sala de aula (como, por exemplo, os volumes da série Harry Potter).
Sem perder tempo com discussões sobre a ingenuidade e o romantismo, as intensas batalhas – mimetizadas em rios de sangue − estão misturadas com o erotismo. O sexo aparece constantemente (em descrições, digamos, discretas). Em alguns momentos, seguindo algumas lições ministradas pela vida política, a cama é o melhor lugar para combater a morte e lutar pela vida.
Nos quatro primeiros volumes da série não houve economia de personagens. Milhares entram em cena para morrerem alguns parágrafos depois. Outros são tragados pelas maledicências palacianas (em algumas situações, muito mais selvagens, mais covardes, do que o combate corpo−a−corpo). Aqueles que sobrevivem às contendas bélicas e sociais não possuem a mínima garantia de continuar existindo. Provavelmente se transformarão em vítimas em futuro não muito distante.
O genocídio ficcional serve de aviso para o leitor não se apegar afetivamente com algum personagem. Provavelmente a desgraça alcançará a todos (leitor e personagem) em alguma página.
O quarto volume, denominado O Festim dos Corvos, segue os princípios mais elementares da técnica diversionista. Ao mesmo tempo em que é divertido, também procura escapar do tema básico da narrativa. Em lugar de tentar responder às perguntas formuladas nos volumes anteriores, preocupa−se em acrescentar novos elementos, novas questões. De certa forma, é um exercício competente da nobre arte de "encher lingüiça".
Paradoxalmente, essa estratégia (que reúne o tergiversar e o postergar) funciona. O leitor, em lugar de dar vazão à frustração, se deixa envolver pela narrativa e, momentaneamente, esquece de Jon Snow, Tyrion Lannister, dos irmãos Brandon e Rickon Stark e de Daenerys Targaryen. As ameaças contra a Muralha e os dragões também ficam de lado.
A terra devastada é o cenário do quarto volume deAs Crônicas de Gelo e Fogo. Personagens até então secundários ganham destaque (Jaime Lannister e Samwell Tarly, por exemplo). As sobras da guerra continuam respingando nos camponeses. A nobreza vive em um mundo a parte, incapaz de reconhecer nos destroços o esqueleto podre de um poder que não existe mais: dividem o tempo entre mexericos e novas trapaças.
Ao final do volume, o leitor, descobre o elementar: em 586 páginas de texto nada foi decidido. Seguindo a regra básica dos folhetins: não percam o próximo capítulo.
Raul Arruda Filho
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